Repórter se disfarçou de fascista para acompanhar evento de campanha do PL Jovem
A curiosidade é um convite ao inusitado. Ao menos foi essa a impressão que tive no último fim de semana. Alguns dias atrás, recebi uma mensagem interessante. Aparentemente, o Partido Liberal (PL) em Pernambuco estava preparando o que seria um “grande” encontro da extrema-direita em Recife. O evento seria o lançamento do PL Jovem, um braço do partido para a juventude fascista no estado.
Após uma rápida busca na internet, descobri que o evento aconteceria no Clube Internacional do Recife, às 9h do sábado (13), e teria a participação especial de ex-ministros do governo Bolsonaro, influenciadores e lideranças de direita, além de parlamentares eleitos pela sigla – entre eles, Nikolas Ferreira (28), ex-vereador em Belo Horizonte e eleito o deputado federal mais votado do país em 2022.
O material de divulgação que chegou ao meu WhatsApp, veio acompanhado de uma proposta um tanto inusitada: “Quer ser um jovem reacionário por um dia?”. Fiquei de orelha em pé. Aquilo me soava quase como uma mistura de pesquisa etnográfica e jornalismo gonzo. Não pensei duas vezes: “é pra brincar de Infiltrado na Klan? Gostei!”.
Dali em diante, passei a semana preparando meu disfarce. Vesti uma skin evangélica e arranjei uma bandeira do Brasil para fazer de capa. Até raspei a barba que cultivei por 3 anos. A ideia era evitar ser alvo de violência caso fosse reconhecido como “aquele rapaz que trabalhava com Direitos Humanos”, ou “o bicho que vi nos protestos de esquerda” e até mesmo como sendo “o cara com o símbolo antifa tatuado nas costas”. E cá entre nós, até funcionou bem! No evento, encontrei duas pessoas que conhecia da época de faculdade, um amigo do meu irmão e meu vizinho. Ninguém me reconheceu.
Assim, sem barba e disfarçado de patriota (pronto para bater continência à bandeira americana), eu cheguei ao local 20 minutos antes. Sentei-me em um banco de pedras na Praça do Internacional e observei as pessoas chegando, usando camisas da CBF como um símbolo anticorrupção. Embora o evento fosse o lançamento do PL Jovem, a maioria expressiva tinha um perfil bastante específico: eram homens com mais de 35 anos.
Lá dentro, encontrei vários posando para fotos, ou fazendo selfies, com bandeirões de torcidas organizadas com os dizeres “Direita Sport” e “Direita Coral”. “Essa organizada pode”, ouvi alguém comentar.
Apesar dos organizadores terem divulgado a informação que mais de 2.500 pessoas já haviam se inscrito, não parecia haver ali mais do que algumas centenas que, filmadas do ângulo certo, poderiam parecer milhares. Enquanto eu caminhava entre o público, um sujeito bombado e de cara amarrada me entregou um adesivo onde se lia: “Gilson é Bolsonaro, e Bolsonaro é Gilson”.
Bati os olhos no material e tive a certeza de duas coisas: 1) eu tinha em minhas mãos a real justificativa para aquele evento (promover as candidaturas majoritárias do partido); e 2) que o slogan era uma cópia do lema usado pelo atual Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, quando disputou a Presidência da República, em 2018 (Haddad é Lula e Lula é Haddad).
O evento começou. As caixas de som tocavam “Bolsonaro é Norte, Bolsonaro é Nordeste”, enquanto o mestre de cerimônia, Rodnei Mattoso (locutor oficial do ex-presidente), assumia o seu lugar no palco.
Definir Rodnei é complicado se você nunca o viu em ação. Com o microfone na mão, ele transita entre um locutor de rodeio e um pastor de igreja que está prestes a falar em línguas estranhas. Sua performance costuma estar acompanhada de efeitos sonoros e melodias épicas que dão a tudo um ar exageradamente dramático. Enquanto isso, ele usa mensagens genéricas como “Volta Bolsonaro?” e “Quem é Cristão aqui faz barulhooooooo…” para levar o público ao delírio.
Durante todo o evento, as pessoas gritavam “Bolsonaro 2026”, como se realmente acreditassem que o ex-presidente (que está inelegível desde junho do ano passado) realmente vá concorrer na próxima eleição.
Em dado momento, Rodnei grita e começa a apresentar os nomes do grupo de 17 homens e 2 mulheres que ocuparam o palanque do PL. Uma vez que a trupe se enfileira no palco, a locução convoca o hino nacional e todos começam a entoá-lo. Olho para os lados e vejo algumas pessoas mexendo a boca de forma caricata, como se não soubessem a letra completa. É aí que a música termina e o mestre de cerimônia puxa um grito que o público repete várias vezes a plenos pulmões: “Deus, Pátria, Família e Liberdade” – uma atualização do lema dos “galinhas verdes” da Ação Integralista Brasileira (AIB), movimento de orientação fascista liderado por Plínio Salgado que, entre 1932 e 1937, reuniu cerca um milhão de filiados.
No palco, o ex-ministro da Saúde, Marcelo Queiroga (o quarto e último a assumir o cargo durante o governo Bolsonaro), falava jocosamente ao microfone. “Eu trouxe um presente para você Nikolas”, dizia ao entregar ao deputado federal uma caixa contendo um boneco de Aedes aegypti com a cabeça do presidente Lula, que ele chamava de “presidengue”.
Enquanto Nikolas brincava com o novo brinquedo, Queiroga (investigado em 2021 pela CPI da Covid) criticava a atual ministra, Nísia Trindade Lima, apontando sua demora na compra de vacinas para dengue e a alta no número de óbitos em decorrência da doença (que já passa de 4.200). Também censurou Lula, que recebeu a primeira dose da vacina Qdenga, da farmacêutica Takeda, em 5 de fevereiro – quatro dias antes do início da campanha de imunização nacional promovida pelo SUS.
“Ele não comprou vacina para a dengue e é por isso que o Brasil é hoje o epicentro mundial da epidemia”, dizia – aparentemente se esquecendo de que, quando chegou ao fim de sua gestão no MS, o Brasil já contabilizava 693,8 mil mortes por Covid-19 e era o terceiro país do mundo com o maior número de mortes. De certo, também deve ter se esquecido que, enquanto foi ministro, seu ex-chefe comprovadamente falsificou o próprio cartão de vacinas. Apesar do seu problema de memória, insistia que era preciso livrar o país do que chamava de “esquerda incompetente e corrupta”.
Durante aquela manhã, várias outras pessoas deixaram sua contribuição ao pensamento “crítico” que era fomentado ali. Enquanto o influenciador cristão Lucas Pavanato fazia um criativo revisionismo histórico, Maicon Sullivan (mais um influenciador cristão) me ajudava a colher informações socioeconômicas sobre o público, pedindo que todos que vinham das periferias levantassem as mãos – menos de um quarto. Já Marco Antônio Costa, conhecido como “Superman da Direita” e responsável pelo FioDiario (um sistema de streaming que produz conteúdo ultraconservador para assinantes), preferiu ousar e imaginou como exilados políticos alguns personagens das Crônicas Bolsonaristas, como Allan dos Santos e outros foragidos.
À sua maneira, todos adotaram o mesmo jeito coach de ser para convocar o público a se mobilizar, disputar espaços na política, criar institutos, grupos de mídia e até organizações não-governamentais de direita, “para disputar emendas parlamentares”, “para realizar ações de comunicação”, “para espalhar a verdade”. Mas qual verdade era essa, eu não sabia… O que sei, é que juntos esses três nomes somam mais de 39,4 milhões de seguidores nas redes sociais. Maicon Sullivan e Lucas Pavanato também são pré-candidatos a vereadores de São Paulo.
Entre uma fala e outra, o locutor tornava a provocar o público e os efeitos sonoros ajudavam com a ambientação. Era como assistir ao Show da Fé, mas ao invés de “exorcizar” atores, eles vibravam com a imagem de Bolsonaro (pequeno e preso) na tela do celular de Nikolas Ferreira – o que durou alguns segundos de uma chamada de vídeo improvisada.
Mas isso pareceu ser suficiente para fazer com que a plateia nem desse atenção quando o Carmelo Neto, deputado estadual no Ceará pelo PL, creditou o PIX e a transposição do rio São Francisco como sendo obras do Governo Bolsonaro; ou quando elogiou com todas as palavras o cuidado que o ex-presidente teve com os Yanomami, deixando de comentar o pequeno detalhe que entre 2019 e 2022 o número de mortes por desnutrição de indígenas dessa etnia aumentou em 331%. Falou também das crianças da ilha do Marajó que, no mundo delirante da ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves (hoje senadora), eram vítimas de exploração sexual.
Lidar com dados não parece ser o forte dos bolsonaristas, como pude observar na fala de Gilson Machado, ex-ministro do Turismo. Entre críticas à segurança pública e à gestão do PSB, mencionou uma pesquisa (cuja fonte permaneceu um mistério até o fim de sua fala) que apontava que “em Recife tem mais de 50% de eleitores de direita e, infelizmente, alguns deles estão votando em quem apoia ladrão, bicho; que apoia quem desviou dinheiro do país, quem não comprou vacina de dengue…”
“Ah, mas ele é bonito, ele pinta o cabelo, ele dança”, disse Gilson, tentando imitar os apoiadores do prefeito do Recife, João Campos (PSB). “Mas eu também danço porra!”, protestou, “e tem outra coisa, ele não toca sanfona e eu toco”. Imediatamente me veio a lembrança do ex-ministro em 2020, com o instrumento amarrado ao peito, tocando e cantando Ave Maria, acompanhado de Paulo Guedes e Bolsonaro, que àquela altura era alvo de denúncias (dentro e fora do país) por genocídio e crimes contra a Humanidade. Nesse mesmo período, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich deixaram o Ministério da Saúde em menos de 29 dias, após sucessivos desgastes com o presidente e divergências em relação ao combate à pandemia.
Depois de muito conversar, Gilson finalmente faz o que todos estavam esperando: convidou o deputado Nikolas Ferreira (principal promessa da legenda no país) a tomar o seu lugar. A fala do rapaz veio carregada de preconceitos xenófobos. Ele descreve uma visão estereotipada do Nordeste e promete que, em 15 anos, a região será de direita e que estará “livre do PT”. Durante seu discurso, enquanto dizia que “Lula vai passar” algumas vozes na multidão completavam gritando “vai morrer!”.
Apesar de jovem, Nikolas fala como um populista experiente e adota as mesmas estratégias que os colegas de partido: questiona os valores e volumes de emendas parlamentares apresentadas para favorecer políticos em currais eleitorais, mas disfarça que o orçamento secreto foi um instrumento político criado em 2020 pelo ex-presidente, permitindo a destinação de verbas do orçamento público a projetos definidos por parlamentares sem a devida identificação.
Quando o evento terminou, tentei conversar com algumas pessoas. Um rapaz muito jovem me disse que vinha de Caruaru só para ver o deputado e que, assim como Lucas Pavanato e Maicon Sullivan, ele também pensava em produzir conteúdo de temática conservadora para a internet. Uma senhora bem vestida que aparentava ter uns 70 anos confirmou que havia acampado em frente a quartéis e que mandou dinheiro para um amigo que participou do 8 de janeiro, “afinal de contas, Brasília é uma cidade cara, não é?”. Hoje, ela o chama de “preso político” e considera “um absurdo” que ele esteja preso por invadir a capital federal e tentar dar um golpe de estado.
Também conheci um casal que morava no bairro do Cordeiro, com quem voltei conversando no BRT. Enquanto eu tentava descobrir suas impressões do evento, um homem em situação de rua entrou na estação sem pagar. Observando o sem teto caminhar pela estação, e acreditando estar acompanhada de alguém que partilhasse sua visão política, a mulher se sentiu à vontade para falar abertamente em higienização social, insistindo que era preciso fazer algo sobre “essas pessoas” a qualquer custo (com bastante ênfase nessa parte do “a qualquer custo”). “É por isso que o Brasil é assim”, resmungava, “falta vergonha, falta polícia para essa gente!”
Quando cheguei em casa, não conseguia parar de pensar nas coisas que ouvi a manhã inteira, nas pessoas com quem falei, na iconografia bolsonarista… Pensei sobre a experiência de me fantasiar como um deles. Vendo aquelas pessoas no seu habitat, agindo de maneira despreocupadamente odiosa, à vontade demais para se preocupar com noções mínimas de civilidade e respeito à figura humana.
Quando eu cheguei ao Clube Internacional, achava que eu era o lobo em pele de cordeiro. Agora, percebo que era justamente o oposto. Eu é que era o cordeiro que havia se vestido a pele do lobo para me misturar aos outros e vê-los desnudar suas fantasias. As palavras de Tyler Durden (personagem interpretado por Brad Pitt em Clube da Luta), cercado de capangas e ameaçando castrar um político americano com uma faca não sai da minha cabeça. “Fazemos sua comida, catamos o seu lixo, conectamos suas ligações, dirigimos suas ambulâncias e te protegemos enquanto você dorme”.
Apesar da experiência antropológica, não obtive resposta para algumas perguntas. Como deve ser ver o mundo de uma forma tão distorcida que torna impossível perceber as próprias contradições? Como deve ser reimaginar a história e os fatos a todo momento para justificar um Brasil paralelo que jamais existiu? Como deve ser viver a vida acreditando travar uma guerra santa, guiado por um Messias que tenta evitar a prisão ao mesmo tempo em que exalta a violência e o autoritarismo? Qual a sensação de chocar o ovo da serpente?