O estatístico baiano Mário Augusto Teixeira de Freitas defendia já nos anos 1930 que o Brasil precisava “se conhecer para tornar-se senhor de seu destino”. O país, dizia ele, “ignorava quase tudo de si mesmo”.
Os argumentos de Teixeira de Freitas, que hoje é nome de uma das maiores cidades do interior da Bahia, foram fundamentais para a criação em 1936 de um órgão de estatísticas nacional: o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, ou IBGE.
Se o instituto ajudou de fato o Brasil a olhar para si e seus problemas, hoje ele tem sido mais um alvo do polarizado debate político nas redes sociais.
Um levantamento da Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getúlio Vargas (FGV Comunicação Rio), realizado a pedido da BBC News Brasil, mostra que o IBGE caiu “na boca do povo” em 2024.
Foram 326.780 postagens com menções ao instituto no X (antigo Twitter), entre janeiro e meados de junho. Isso é um aumento de mais de 100% em relação ao mesmo período em 2023, quando houve 157.180 menções.
Segundo a análise da FGV, “o debate nas redes sociais sobre o IBGE é mobilizado especialmente a partir da utilização dos dados estatísticos para embasar críticas a opositores e suspeitas sobre a credibilidade das pesquisas realizadas pelo Instituto sob a gestão de Marcio Pochmann”.
Pochmann é o atual presidente do IBGE e, desde sua indicação pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao cargo, é criticado pela oposição e nomes ligados ao mercado financeiro, que o acusam de ser “ideológico” à esquerda.
A economista Elena Landau, que foi coordenadora do programa econômico da candidatura da atual ministra do Planejamento, Simonte Tebet (MDB), à Presidência em 2022, chegou a classificar a escolha de Pochmann como “um dia de luto para a estatística brasileira”.
Os frequentes posicionamentos de Pochmann a respeito da política e da economia brasileiras são criticados também por ex-funcionários do órgão ouvidos pela BBC News Brasil.
“Isso contraria recomendações internacionais”, diz a ex-presidente do instituto Wasmália Bivar.
Procurado pela reportagem para comentar as críticas, o IBGE informou que Pochmann não poderia conceder entrevista.
O instituto disse em nota que segue as boas práticas internacionais de levantamentos estatísticos.
Apesar de números econômicos, de forma geral, positivos ao governo (como o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) acima do esperado ou o recuo do desemprego, na menor taxa histórica em maio), são os perfis alinhados ideologicamente à direita que estão dominando o debate nas redes sobre o IBGE.
Segundo a FGV, 45% das menções ao instituto no X em 2024 partiram do campo ideológico de oposição a Lula. Perfis de esquerda somam 30%. O restante está dividido entre centro, mídia tradicional e progressistas (perfis alinhados à esquerda, mas não diretamente associados ao governo).
Entre os perfis com mais tração identificados pelo levantamento, estão os de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
O governo do ex-presidente, inclusive, ficou marcado por embates com o órgão, como os atrasos no Censo e críticas a dados não muito positivos para Bolsonaro.
Posts que viralizam em 2024 tentam descredibilizar os dados apurados pelo instituto.
São mensagens como: “na próxima ida ao supermercado, imprima a inflação oficial no site do IBGE e pendure no carrinho” ou “não adianta o IBGE pintar os números. O mercado não engole”.
Segundo a análise da FGV, um dos principais temas usados para apontar uma suposta “ideologia” na atuação do IBGE foi o novo Atlas Geográfico Escolar.
O mapa-múndi lançado em abril traz com o Brasil no centro e não à esquerda como na maioria dos outros atlas.
Para os críticos do IBGE, isso foi uma prova de que o instituto estava agindo de forma politizada, aponta a FGV, enquanto quem apoiou a mudança debochou da suposta falta de conhecimento de geografia de quem falava mal do IBGE.
O mapa mais utilizado do mundo é o que estabelece no centro o Meridiano de Greenwich, que passa por Reino Unido, França, Espanha, Argélia, Mali, Burkina Faso e Gana.
Em 1884, foi determinado na Conferência Internacional do Meridiano que ali seria a longitude 0º0’0” — ou seja, Greenwich dividiria a Terra entre leste e oeste.
A reunião que definiu esse “meio” aconteceu em Washington, nos Estados Unidos, e reuniu 25 países, dos quais 22 votaram a favor, um foi contra (República Dominicana) e dois se abstiveram (França e Brasil).
Na discussão nas redes sobre o novo mapa com o Brasil no centro do mundo, Pochmann defendeu que a representação cartográfia do mundo a partir de Greenwich mostra “a centralidade dos países do Norte Global”. Seria uma “expressão do projeto eurocentrista de modernidade Ocidental”.
“A emergência do Sul Global acompanha o reposicionamento do Brasil no mapa-mundi”, argumentou o presidente do IBGE.
O amplo conceito de Sul Global divide o mundo entre os países desenvolvidos (Norte) e os em desenvolvimento.
Apesar do nome, algumas nações que ficam ao norte da Linha do Equador, como no Norte da África ou na América Central, são classificadas como “Sul”.
O IBGE declarou que a “divulgação (do atlas) ocorre em consonância com o momento especial em que o Brasil está presidindo o G20 e é uma oportunidade de mostrar uma forma singular do Brasil ser visto em relação a esse grupo de países e ao restante do mundo.”
“A terra é redonda”, disse Lula, ao repostar o mapa, entrando no debate.
A discussão foi tanta que o mês de abril, quando o mapa foi divulgado, foi quando houve o maior debate sobre o IBGE, de acordo com a FGV.
Segundo a análise da FGV, a “direita descredibiliza dados positivos divulgados pelo Instituto a partir de críticas direcionadas à direção de Marcio Pochmann”.
Ex-presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o economista e pesquisador da Universidade de Campinas (Unicamp) é membro do PT.
Ele já presidiu a Fundação Perseu Abramo, mantida pelo partido, e o Instituto Lula, além de ter sido candidato pelo PT à Prefeitura de Campinas (SP).
Na época de sua nomeação, em julho de 2023, diversas reportagens na imprensa citaram críticas do mercado financeiro e de economistas liberais à presença de um nome “ideológico” à frente do Instituto.
Isso levou a Unicamp a publicar uma nota para defender Pochmann, lamentando “tentativas de desqualificação” e “a atribuição — leviana — de eventuais manipulações de estatísticas num futuro exercício do cargo”.
Um ano depois da nomeação, Pochmann se mantém ativo no debate político.
Em seu perfil no X, são frequentes suas críticas ao neoliberalismo, à taxa básica de juros mantida pelo Banco Central ou aos super-ricos. Recentemente, postou uma homenagem à liberdade do fundador do Wikileaks, Julian Assange, e criticou o governo de Javier Milei, desafeto de Lula, na Argentina.
Também repercutem na imprensa e nas redes declarações dadas por Pochmann em eventos, como elogios aos métodos estatísticos da China ou um suposto intuito de alterar o modelo de divulgação de estatísticas do órgão de pesquisas.
O ator e humorista Victor Coelho, mais conhecido como Mionzinho, é um dos críticos de Pochmann e do IBGE.
Para os seus mais de 1,4 milhão de seguidores do X, ele vem usando o termo “critério chinês” para lançar dúvidas sobre dados do instituto.
“Venho me preocupando com o IBGE primeiro pelo que já foi feito em outras épocas do PT no poder e também pelo presidente Marcio Pochmann e suas declarações”, diz Coelho à BBC News Brasil, citando o passado do presidente e episódios.
Para o ator, que se define de direita, a imagem do instituto tem sido manchada, mas “entre uma parte pequena do país”.
Os posicionamentos públicos de Pochmann destoam, de maneira geral, do perfil de antecessores.
À BBC News Brasil, a economista Wasmália Bivar, presidente do IBGE entre 2011 e 2016, no governo de Dilma Rousseff (PT), diz que o comportamento de Pochmann não segue recomendações de boas práticas em órgãos de estatísticas.
“Nunca manifestei as minhas opiniões sobre questões econômicas e políticas porque sempre entendi que isso não era papel do presidente do IBGE”, diz.
“O IBGE tem que ser uma instituição manifestadamente independente justamente para ganhar confiança de todos.”
Outras ex-lideranças do instituto, como Edmar Bacha (presidente entre 1985 e1986) e Martha Mayer (diretora de pesquisas entre 1999 e 2004) também já fizeram críticas a Pochmann na imprensa.
Mas WasmáliaBivar ressalta que o comportamento do atual presidente do IBGE não pode ser relacionado a uma suposta “manipulação de dados” pelo instituto.
“Há uma diferença monstruosa entre uma coisa e outra”, diz a ex-presidente do IBGE.
Bivar diz acreditar que o IBGE se mantém independente, importando pouco “quem senta naquela cadeira”.
“A independência do IBGE é aquela que verdadeiramente conta para a sociedade brasileira. E os técnicos são comprometidos com isso porque eles sabem que a sobrevivência do órgão depende da sua credibilidade”, argumenta.
“Afinal, o IBGE vai à sua porta e pega seus dados. É preciso confiança. Qualquer um que chegue ameaçando isso vai ter que se ver com os técnicos”.
A economista lembra que o órgão funciona como uma cadeia de produção. “Tem um grupo de pessoas que conhecem o resultado, e ele não pode ser mudado, alterado, a despeito das opiniões.”
“Quando o resultado chega nas mãos do presidente do IBGE, é um resultado fechado já. Não chega nada preliminar.”
O Instituto tem cerca de 11 mil servidores, segundo declaração recente de Pochmann.
Funcionário do IBGE por 30 anos e autor de livros sobre a memória da instituição, o geógrafo Roberto Schmidt de Almeida avalia que a atuação “do atual presidente não reflete a realidade do que ocorre na casa, que tem uma quantidade grande de técnicos que conseguem reprimir questões ideológicas”.
Almeida lembra ainda que há um controle internacional a respeito dos orgãos de estatísticas dos países.
“Não vejo hoje os órgãos de estatísticas do mundo, a não ser de ditaduras muito severas, fazendo maquiagem. Hoje, as estrutura de dados no mundo são muito semelhantes, tem reuniões internacionais para discutir isso”, diz.
Em nota à BBC News Brasil, o IBGE declarou que “segue seu Código de Boas Práticas das Estatísticas, em absoluta consonância com os Princípios Fundamentais das Estatísticas Oficiais da ONU [Organização das Nações Unidas], e não realiza levantamentos relativos à popularidade ou repercussões nas redes de suas pesquisas, indicadores e estudos divulgados”.
A BBC News Brasil também solicitou uma entrevista para que Pochmann pudesse responder às críticas, mas foi informada que, “por questões de agenda, o presidente do IBGE não poderá conceder entrevista ou responder perguntas”.
Em 2023, antes da chegada de Pochmann, o sindicato dos funcionários do IBGE (ASSIBGE) lançou um manifesto pela democratização interna do instituto.
A defesa é por uma eleição direita para presidente do órgão e superintendentes estaduais, evitando indicações de cunho político.
A polêmica da inflação
Não é de hoje que há embates ideológicos em torno dos tipos de números divulgados pelo IBGE.
“O IBGE e os dados só são interessantes quando agradam aquilo que seu grupo quer”, diz Almeida, que publicou livro com o pensamento de geógrafos que trabalharam no instituto desde 1938.
Ele é considerado uma enciclopédia viva do IBGE e lembra de datas e de cada presidente do órgão.
Sobre os conflitos entre governos e os dados, ele se recorda, por exemplo, do “período em que Delfim Netto era ministro da Economia (na ditadura militar, entre 1967-1974), ou no governo Sarney (1985-1990), em que se falou das tentativas de mascarar dados da inflação”.
Em ambos os casos, o processo inflacionário pressionava o governo do momento a tentar minimizar sua velocidade.
A passagem também está no livro Muito Além dos Índices: Crônicas, História e Entrelinhas da Inflação (Editora FGV, 2008), em que o autor Salomão Quadros cita tentativas de Delfim em abastecer com produtos a cidade do Rio (onde era feito o levantamento), para abaixar os preços.
Mas cenários como esse hoje são improváveis, segundo quem trabalhou no IBGE. O processo de apuração do índice oficial é muito complexo com a pesquisa de milhões de itens que são vendidos em dezenas de milhares de estabelecimentos em 16 capitais do país.
Muitas das tentativas de descrédito ao IBGE nas redes hoje estão ligadas justamente à inflação. Críticos sugerem que o índice atual (de 4,23% nos últimos 12 meses) não reflete o aumento que os consumidores estão sentindo nas gôndolas dos mercados.
Isso ocorre embora o índice do IBGE não seja muito diferente do índice de inflação medido pela FGV, o Índice Geral de Preços – Mercado (IGP-M), que mostra uma taxa de 2,45% nos últimos 12 meses ou do Índice de Preços ao Consumidor (IPC) da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), com acúmulo de 2,97%.
Wasmália Bivar, hoje professora de economia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), responde a esses questionamentos sobre os dados de inflação do IBGE com uma atividade que ela realiza com alunos do terceiro semestre do curso de graduação.
Ela pede para que cada grupo de alunos monte sua “cesta de consumo”. Ou seja, escolher, entre produtos e serviços medidos pelo IBGE, quais são aqueles consumidos pelo grupo.
São em geral jovens, que não gastam, por exemplo, com aluguel ou luz, mas tem gastos com telefonia, streaming e vida noturna.
Com a cesta montada, eles calculam, a partir dos dados do IBGE, quanto foi a inflação para aquele grupo de produtos específicos.
Bivar mostra a eles que “o cálculo da inflação deles é diferente da inflação do Brasil”.
“A inflação brasileira é uma média ampla. Não é a minha inflação, a sua inflação ou a dos meus alunos”, explica.
“O IPCA (índice de inflação) mede a família brasileira que tem entre 1 e 40 salários mínimos. É um universo gigante. Quanto mais perto de um salário mínimo, maior vai ser o peso em alimentação, por exemplo. Óbvio que a inflação vai ser diferente para cada.”
Para Bivar, mesmo em situações em que não haja polêmicas sobre quem ocupa a cadeira de presidente, o órgão será sempre “vidraça”.
“Quando os dados favorecem o governo, a oposição crítica o IBGE. Quando não favorece o governo, a oposição fica feliz e o governo de algum modo tende a criticar o IBGE. Isso já aconteceu inúmeras vezes”, opina.
“Essa alternância é que faz com que o IBGE tenha credibilidade no seu trabalho e independência.”
O geógrafo Roberto Schmidt de Almeida também sai em defesa do local onde trabalhou por mais de três décadas.
“Você pode ter algumas pessoas tentando vender essa ideia de que o IBGE não é confiável, mas é uma ideia que ela morre muito rapidamente.”